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O imobilismo no serviço público

Léo da Silva Alves

Governos incompetentes, desmoralizados e sem foco nos resultados costumam debitar aos servidores as consequências das próprias fraquezas. É verdade que, como em todo grupo, há psicopatas corporativos, débeis de caráter, narcisistas destrutivos e inapetentes laborais. Longe, todavia, de ser a regra. Milhões de pessoas saem todos os dias de casa para cumprir, dignamente, os seus ofícios nas repartições públicas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios e lá dentro encontram, por vezes, praxes que se estabeleceram à margem da inteligência, mas que precisam cumprir sob a pena de incorrerem em descumprimento de normas regulamentares ou serem acusados de insubordinação por um chefe eventualmente medíocre.

 

O sistema de administração de pessoas no serviço público é completamente distinto daquilo que se vê nas organizações privadas, onde a lógica, o acompanhamento eficiente e a meritocracia prevalecem. Nos espaços administrativos o processo é diferente: o raciocínio lógico nem sempre é bem visto; o acompanhamento é substituído pela sanção; o mérito é preterido por questões de ordem pessoal, sindical ou partidária. Uma das mais importantes autarquias federais chegou a estabelecer, nos critérios para ocupar cargos em comissão, a prevalência de ser líder sindical em detrimento de curso superior.

 

É isso, em especial, o que contamina o serviço público e faz com que as pessoas admitidas para oficiar à sociedade vivam e laborem em um hemisfério diferente. E não é uma marca nacional. Em Portugal, especialistas dizem que na máquina administrativa em geral há uma tendência natural de se diluírem as responsabilidades. A percepção é de cada um procura descarregar sobre o outro a culpa pelos erros ou falta de resultados. Mas é a burocracia infernal que alimenta os procedimentos administrativos o que contribui substancialmente para isso. Um expediente, afinal, passa por várias mãos. É de responsabilidade de muitos e, por consequência, de ninguém.

 

Nesse contexto ilógico, de lentidão e de descompromisso, o agente público que tem personalidade, que assume responsabilidade e que cobra a parcela devida de todos os que o cercam, se torna na repartição um elemento estranho, revolucionário, incompreendido. Quantos já deixaram cargos públicos exatamente porque eram proibidos de produzir? Quantos não suportaram a pressão em face do péssimo hábito de ter ideias?

 

É interessante apontar o que já fora constatado por Rudolf Von Ihering, no seu clássico “A Luta pelo Direito”:

 

(...) a sorte daqueles que têm a coragem de efetivar a aplicação da lei torna-se um verdadeiro martírio; o enérgico sentimento do direito, que lhe não permite ceder o lugar ao arbítrio, transforma-se para eles em verdadeira maldição.

 

Abandonados de todos os que eram seus aliados naturais, ficam isolados em presença da ilegalidade secundada pela apatia e covardia gerais; e quando, à custa de rudes sacrifícios, têm conseguido ao menos a satisfação de haverem sido fiéis a si próprios, não recolhem regularmente, em vez de reconhecimento, mais do que zombarias e desprezo.

 

Entenda-se que a tendência dos serviços públicos é cair na rotina. “Esse é um dos grandes males da burocracia”, escreve Mário Gonçalves Viana, autor português, no livro “Ética Geral e Profissional”, editado pela Livraria Figueirinhas, da cidade do Porto. O professor Viana escreve:

 

Cada um entende que é ao outro que compete fazer mais do que ele; cada um se julga incompreendido e mal pago; cada um se julga um isolado, com direito de fazer somente o que lhe convier.

 

A aparente apatia de agentes públicos é, então, corolário da reunião desses fatores. O problema – destaque-se – é o modelo. Afinal, as pessoas no serviço público ou nas demais funções da vida privada têm absolutamente a mesma fisiologia; operam com os mesmos sentidos e não é por trabalharem neste ou naquele espaço que mudam de caráter. A ranhura está dentro da repartição pública, onde o homem é levado a se desumanizar, forçado a ser insensível. O funcionário tem o dever de operar como máquina; precisa executar gestos mecânicos. E assim, forçosamente, desliga-se da realidade e vive em um mundo diferente, abstrato, artificial, de requerimentos, memorandos, ofícios, processos, organogramas, gráficos, despachos. Isso é essencialmente burocracia. E a burocracia não tem alma.

 

 

Léo da Silva Alves é advogado, autor de obras conhecidas em temas relacionados à responsabilidade de agentes públicos; é conferencista com atuação na América do Sul, Europa e África. 

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